ENFRENTANDO O DRAGÃO


Knockin' On Heaven's Door (Album Version) by Bob Dylan on Grooveshark

Os pés descalços deixavam manchas quase imperceptíveis no asfalto áspero. Ela já não sentia a dor da pele em frangalhos. A adrenalina percorria seu corpo como veneno e cura. Banho de suor frio. Gotas lambidas pelo vento.  Ele.  Aquilo. O que quer fosse a farejava. Sabia disso. Intuição, poderia se afirmar. O cheiro do medo talvez fosse forte demais. Ou o sangue de seus pés machucados fosse um deleitável convite. Setas luminosas que levavam direto até ela, como o rastro de guloseimas deixado por João e Maria para marcar o caminho de casa. Casa? Ela riu ao perceber que não sabia mais o que era isso.


Ao longe escutava o barulho dos fogos. Podia enxerga-los através de um olho imaginário. As cores se dispersando em slow motion em um céu sem nuvens e sem estrelas.  Parecia haver uma eternidade entre o momento que colocou seu vestido branco, recém-lavado. Cheiro de lavanda e novidade. Pés descalços para sentir a areia. Sonhos e esperanças de que tudo, absolutamente tudo, seria diferente apenas por que um dígito mudou. Ah, como mudou! Teria mesmo acreditado que mudaria tanto? Que teria algo caçando-a enquanto a noite era iluminada em explosões multicoloridas, delineada em beijos que se lançavam para o céu, em lagrimas que se misturavam ao sal do mar.
 Ah, tudo tão previsível e ainda assim ela era a bala de prata que talhava as ruas desertas da cidade em festa. Todos cantavam, preocupados demais em ser felizes.  Ninguém escutaria seus gritos. Corria entre as ruas estreitas. Era golpeada pelos muros, nas curvas, com a própria força de seu corpo em movimento. A manga do vestido rasgada. Fios de seda flutuando. Joelhos cinza e vermelho. Não cairia mais. Não tinha coragem de olhar para trás e descobrir o quão perto do fim estava. Enquanto tivesse pernas, correria. Só sabia que correria. E sentia o hálito desconhecido em seu pescoço. Fogo. Cada vez mais quente. Cada vez mais próximo.
Então chegou ao que devia ser seu fim. Um beco sem saída. Um muro alto demais para escalar. Pulmões dilatando-se em um ritmo descompassado. Não havia para onde mais correr. Cerrou os olhos e os punhos. Virou o corpo lentamente. Podia escutar aquela respiração forte, compassada, alta demais para ser a dela. Braços cruzados na frente do peito. Sangue brotando dos arranhões, misturando-se ao suor. Cabelos colados a pele. O vento frio da noite mais bêbada do ano beijava seu rosto com incontáveis lábios. Teve vontade de rir. Às vezes tudo o que se pode fazer é escolher manter certa dignidade e engolir o próprio medo. Às vezes tudo o que se pode fazer é não gritar.
Mas ela... Ah, ela riu como uma louca abrindo os braços. Seus olhos descerraram para encarar aquilo. A coisa a sua frente. Sem piscar. Sem tremer. Sem desviar. Olhos vermelhos. Olhos negros.  E gritou. Gritou tão alto que cobriu o barulho dos fogos, as declarações de amor, os votos não sinceros. Gritou como a fera a quem nunca deram um nome. Que nunca saiu a luz do sol. Que nunca pisou na cidade dos homens.  Gritou e tudo ao seu redor pareceu estancar em um minuto eterno. A gota de suor caindo no asfalto, escorrendo pelo meio fio, seguindo um caminho sem volta até o bueiro.
Gritou e não era mais um grito. Era o canto de uma batalha por vir.
Ela era o dragão!

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