I
Sabe aquele arrepio que corta a
pele de tão inesperado e tão gelado? Foi
isso o que ela sentiu naquele momento. Um calafrio intenso e repentino subindo
pelas costas, fazendo seus pelos eriçarem até a nuca. Pensou com um raciocínio lúcido
e lógico que nunca deveria ter entrado naquele casarão.
- Aceita um pouco mais de chá? –
A mulher ruiva perguntou. Luiza olhou assustada para ela, como se tivesse sido
despertada de um sonho. Sua interlocutora sorria amavelmente.
- S-sim, m-mais chá. N-Não fará
mal, não é verdade? – Luiza devolveu um sorriso amarelo. A ruiva disse algo
sobre não demorar, deu a ela as costas e saiu pela porta larga.
Luiza abraçou os próprios ombros
e ajeitou-se mais na ponta do sofá. Havia algo estranho naquela sala, naquelas
paredes.
Nunca havia estado em um lugar como aquele. Não que fosse feio, pelo contrario tudo era muito agradável de olhar. O sofá era macio. Tudo era convidativo. Mas não aconchegante. Sabe quando algo parece certo demais? Confortável demais? Era algo assim que ela sentia ali, naquela casa. A decoração era antiga, mas parecia um misto de muitas décadas, muitas eras. Percebia que cada objeto parecia pertencer a uma época diferente e ainda assim no conjunto funcionavam bem reunidos, como se dentro daquelas paredes fosse natural presente e passado se misturarem de forma tão simbiótica. Havia um gramofone sobre uma bancada muito simples, feito madeira entalhada com motivos silvestres e sem verniz. Parecia que iria despencar a qualquer momento, mas continuava firme sustentando o peso do gramofone e de alguns vinis.
Na parede havia quadros de
molduras e estilos diversos e divergentes. Uma grande pintura de tons sóbrios e
escuros mostrando uma camponesa pastoreando um rebanho. Ao lado um painel
colorido com a cena de uma lagoa repleta de jovens moças conversando com um
rapaz que se mantinha a margem. Próximo um quadrado branco com figuras
geométricas em azul, vermelho e amarelo. Era um conjunto estranho ali reunido,
mas ainda assim um conjunto. Talvez fosse a luz, pensou Luiza levantando-se
para observar melhor a sala. Deu alguns passos receosos e sentiu-se tola. Era
um casarão antigo apenas. A ruiva parecia viver ali sozinha e ela não havia
visto a sombra de mais ninguém desde que entrara, mas obviamente empregados deveriam
ser chamados periodicamente para manter tudo tão limpo. Todos aqueles objetos
deveriam reunir uma poeira danada pensou Luiza. Certamente a ruiva era uma excêntrica com a bolsa recheada de
dinheiro, nada mais. Pelo menos esse era o raciocínio mais lógico.
Pensava nisso, mas seu corpo
continuava retesado. Vez por outra a estranha sensação de estar sendo
observada. Deu mais alguns passos e parou frente a um móvel de madeira escura e
brilhante, pequenos leões sustentando os segredos que ocultavam as gavetas.
Fotos antigas, todas elas. Variados tons de sépia, poses estáticas demais para
o padrão de 2012, cheio de Vs da vitória e biquinhos. Um rapaz de semblante
contido e uniforme militar contemplava um horizonte perdido no instante que a
foto foi tirada. O cabelo claro dele teimando em cair na testa. Três fotos de
tamanhos iguais estavam dispostas a frente da foto dele. Possuíam de semelhança
o porta retrato idêntico e a mesma temática: aquele casarão onde ela estava
agora. Deveriam ser fotos muito antigas e com uma imensa diferença de anos
entre uma e outra, pois embora a construção permanecesse a mesma ( e pelo jeito
a excêntrica ruiva fizera questão que o casarão não mostrasse os sinais do
tempo, pois ainda tinha a mesma aparência que viu quando entrou ali mais cedo)
todo o entorno era diferente nas três fotografias. Como nunca havia percebido
aquela casarão ali até aquele dia? Havia mais atrás uma fotografia mostrando um
grupo de moças sorridentes. Vestidos e saias abaixo dos joelhos, cinturas
marcadas, cabelos médios caindo em cachos estruturados, mãos em poses pudicas.
Pareciam felizes e despreocupadas.
Luiza estreitou o olhar e
aproximou-se mais daquela fotografia. Reparando bem uma das moças parecia
demais com a ruiva que estava recebendo-a ali. Eram os mesmos olhos arguciosos
e o mesmo sorriso jovial. Poderia ser
sua avó talvez ou bisavó, mas reparando bem o penteado era idêntico e apesar da
foto ser em preto e branco adivinhava o tom avermelhado dos cabelos. Era ela.
Era a mesma. Mas como? Luiza pegou o porta-retratos intrigada. Seu olhar
encontrando o da moça sorridente na foto.
- Está tudo bem? – a voz da ruiva
a assustou. Deu dois passos para trás, segurando firmemente a fotografia como
se fosse uma boia. Seus olhos encontraram os da mulher que trazia uma bandeja
com um bule e um prato de biscoitos. Eram os mesmos olhos que vira a pouco em
sépia, o mesmo brilho vivaz emoldurado pelo penteado de época, a não ser por um
inexprimível buraco, algo que separava a moça da foto daquela a sua frente. Não
sabia dizer ao certo o que era, mesmo assim diferença era palpável.
- Sempre gostei de fotografias! –
a ruiva sorriu condescendente. Levou a bandeja até a mesa de centro com certa
graciosidade. Sentou-se muito ereta na poltrona e começou a servir as xicaras.
Luiza deu-se conta que nem reparou que ela havia levado o bule vazio e o prato de biscoitos que haviam devorado
desde que a conversa iniciara. Olhou novamente o porta-retratos e reparou que
apesar das roupas antigas, da pose e das cores cinzentas, o papel não parecia
envelhecido realmente. Parecia uma foto tirada ontem, mas que tentava imitar
uma fotografia antiga até no papel usado para revelar. Às vezes ouvia falar de
pessoas que se vestiam com roupas de outras épocas e participavam de convenções
onde todos se trajavam como se não pertencessem ao século XIX. Adicionou aquela
a lista de esquisitices que atribuía a jovem ruiva. Colocou o porta-retratos no
lugar e voltou para o sofá onde estivera sentada anteriormente. A sensação de
incomodo continuava mesmo quando recebeu sua xicara de chá. Bebeu um gole e o
liquido pareceu descer viscoso como cola.
- Então – a ruiva começou após
bebericar o chá – você acha que tudo que deu errado nos últimos meses foi culpa
da Ingrid!
- Sim. Eu tenho certeza. Dei duro
nos últimos 12 meses atrás daquele computador! Você precisava ver o quanto de
horas extras dei na época do projeto de Natal. Aquela promoção ERA MINHA! Eu
merecia! Ela não fez nada todo esse tempo. Não como eu fiz.
- Mas ainda assim ela recebeu a
promoção e se tornou sua chefe.
- Ela não me engana. Com aquela
carinha de sonsa e aquelas saias no umbigo? Certeza que ela estava de caso com
o Andrade! O cara é casado! Imagina que piranha vagabunda! E que filho da puta
ele também! Afinal depois do MEU trabalho duro ele subiu de cargo, mas de vez
me indicar como substituta...
- E você acha que eles merecem
pagar...
- Eles merecem! – Luiza bateu a xicara
com força na mesa, derramando um pouco do chá no móvel. Esquecida de qualquer
outra coisa. O assunto a absorvia desde o inicio do ano como uma fagulha que
encontrava papel seco e picado. Parecia crescer a cada dia, consumindo-a junto
a seus pensamentos. – Ah desculpe – Fez
menção de levantar-se e arranjar algo para limpar, mas a ruiva a tranquilizou
com um meneio de cabeça e com um gesto de mãos imperioso a fez continuar. Luiza
sentou-se no fundo da poltrona e repetiu. – Ela merece!
- É possível fazer acontecer. – A
mulher disse com calma, seus olhos perdidos em algum ponto da sala como se
aquela frase fosse a coisa mais natural a ser dita no momento. Um estranho
protocolo. O esperado. – Mas há um preço!
- O que você quer dizer com isso
– perguntou dando-se conta do teor do que conversavam. Não conhecia realmente
aquela ruiva. Sequer a havia visto antes daquele dia e de uma forma que ela não
conseguia compreender havia entrado em sua casa e contado a mágoa que mais
a incomodava . Algo que não comentara
com alguns de seus mais velhos amigos. – Você está sugerindo que pode fazer
algo contra eles? Por mim? Mas a troco de que?
- Eu disse que o que você deseja
pode ser arranjado se você estiver disposta a pagar por isso. -
-Se fosse para expor as
falcatruas deles. Eu tenho economias e posso vender o carro e...
- Nada disso servirá. Não falo de
dinheiro. O que você realmente quer não se paga com dinheiro.
-Você está se oferecendo para
mata-los?
A ruiva revirou os olhos de forma
impaciente. Luiza percebeu o que havia algo diferente entre ela e a mulher da
foto. Algo muito sutil no fundo daqueles
olhos amendoados. Um misto de tristeza e vivência que se pode ver nas pessoas
mais idosas e cuja vida não havia sido de todo boa. Percebeu que a ruiva
parecia muito mais velha e não era por causa do tailleur de tweed e do corte de
cabelos ultrapassado. Ela parecia carregar muitos mais anos que não se
escondiam nas rugas que ela não possuía, não se acumulavam em dobras na sua
pele lisa como pêssego maduro.
-É isso o que você quer?
Luísa quis dizer que não. Quis
levantar-se do sofá furiosa e gritar que não poderia desejar tanto mal a colega
de trabalho e ao ex-chefe. Só queria o que eles deviam a ela, nada mais. Mas
não fez nada disso. Permaneceu em silencio olhando para o liquido acastanhado
na xícara. Chá de maçã. Tinha medo da resposta que sentia na ponta da língua.
- Você parece ter bastante
dinheiro e é muito polida, elegante. N-não me parece uma assassina. – Disse por fim. Sentia certa humildade frente
a mulher ruiva. Não sabia ao certo responder por quê. Talvez a forma com que
ela olhava em seus olhos, como se visse através de sua alma. Talvez fosse o tom
seguro que ela usava para arrancar suas confissões. Não havia comentado de
Ingrid e de Andrade a ninguém a não ser suas amigas mais próximas e dai, de
repente encontra aquele casarão estranho, aquela mulher inquiridora e despeja
todas as suas magoas recentes como se a conhecesse toda a vida. Nem sabia dizer
por que fez aquilo, mas algo a incomodou mais. – Eu só gostaria que eles
perdessem como eu, entende?
-Você está disposta a pagar o
preço?
-O que você irá fazer com eles?
-Eu não farei nada, mas se você
estiver disposta a pagar, tudo será feito. Não posso dizer como, mas posso
dizer que sempre é rápido e inevitável.
- E qual é o preço?
-O preço é justo e equivalente ao
seu pedido. Você precisa aceitar pagar sem saber qual é o preço. Esta é a
regra!
O incomodo cresceu. Luiza
sentia-se zonza, pareceu ver as paredes tremerem. Aquela conversa era algo
surreal mesmo sabendo que havia semanas que desejava todas as piores desgraças
caindo sobre as cabeças dos dois colegas de trabalho aos quais culpava pela tal
promoção perdida. Havia desejado aquilo tão intensamente, tão repetidamente e
então pareceu tornar-se algo cotidiano em sua vida naqueles meses: desejar que
Andrade e Ingrid pagassem pelo não sucesso que ela obteve. Agora tinha a
oportunidade? Aquilo não fazia sentido. Nada daquilo fazia sentido e ela iria
acabar presa porque certamente aquela ruiva era louca de pedra.
-E-eu acho melhor ir embora! Isso
é um erro! – disse Luiza levantando-se num sobressalto. A xicara espatifando-se
no chão. Pedacinhos de vidro espalhados pelas tabuas encerradas. Correu fazendo
o mesmo caminho pelos corredores do casarão, sem nem mesmo lembrar-se por qual
havia entrado, e ainda assim conseguiu chegar a grande porta de mogno negro.
Abriu com as duas mãos como se fosse muito pesada e pulou os degraus até o
jardim, aspirando pesadamente o ar da rua. Era noite. Ela havia entrado ali
ainda pela manhã, mas o importante era que estava fora daquele lugar funesto.
Correu pela rua sem olhar para trás e ainda assim sabia que era observada.
Na sala a ruiva terminava seu
chá.
- Ela vai voltar. Eles sempre
voltam. – murmurou baixinho. Escutou um
barulho próximo, mas não voltou os olhos para o lugar. Continuou bebericando. O
aroma de maçã trazia boas lembranças.
O gramofone começou a tocar uma
música alegre, algo sobre uma noite radiosa e uma incontrolável vontade de
dançar. A ruiva sorriu enquanto colocava a xicara vazia sobre a mesinha.
Levantou-se ajeitando a saia ajustada e depois o casaco. No móvel de gavetas as
fotos pareciam ganhar uma nova vida com a música ambiente. Parecia não ter
passado tanto tempo. A ruiva apanhou um dos porta-retratos, aquele do grupo de
moças sorridentes. Ela também sorria com seus lábios cor de rubi, tão iguais
aos lábios escuros da moça na foto em preto e branco.
-Eles sempre voltam. – repetiu. O
tom da voz marcado por algo inédito na conversa que travará com Luísa. Colocou
o porta-retratos no lugar e saiu da sala.
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