CANÇÃO PARA MELUSINE - Parte V

Parte cinco do conto longo "Canção para Melusine"
Antes de ler este aqui é melhor começar pela parte I  Neste link , a parte II Neste link, a parte III Neste Link e a parte IV Neste Link.
Lorelei by Theatre of Tragedy on Grooveshark
V
Grandes corredores submersos. Colunas de pedra azulada. Chão coberto de aguas marinhas. Esqueletos descarnados, tão brancos, ocultos entre conchas e anêmonas, mexilhões acomodados entre costelas e caranguejos arranhando fêmures. Pequenos peixes comensais flutuando. Aguardando pelas sobras. Pedaços de cor no azul instável. Tão bonito e tão terrível. A menina serpente nadava, imprimia mais velocidade, ganhava os salões submersos da mansão da Foca. Não queria escutar os gritos. Queria estar longe quando a senhora aquática terminasse com o aquele pobre homem.   "Não é minha culpa, não é minha culpa" Ele repetia vez após vez e ainda assim não acreditava.
Ao longe um som indistinguível chegou aos ouvidos da garota. Era um grito ou era um urro? Os peixes continuavam sua dança tão devagar quanto era possível. Ela tapou os ouvidos com as mãos. Tinha começado.






Desceu por tuneis cada vez mais escuros. O a luz do sol não chegava até ali. Até o que a Foca chamava de Quarto dos Espelhos e o que ela chamava de sua cela. Era um cubículo mediano, repleto de espelhos de diferentes tamanhos e formatos. A parede recoberta só por espelhos e havia outros espalhados pelo chão. Molduras rebuscadas de madeira apodrecida, outras de feitio simples.  Algumas mais jovens e outras tão antigas como ela não saberia dizer. Se olhasse para cada um deles podia ver sua imagem. Mil reflexos de si mesma para lembra-la do que era ali. Qual o seu proposito. Quando chegou a Foca havia dado a ela um quarto próximo ao seu e uma cama de madeira escura e dosséis recobertos de algas marinhas. Havia apenas um espelho em uma penteadeira para que ela admirasse sua nova imagem. Vidros perfumados, pentes, flores de plástico. Então a Foca ensinou a menina como manejar os espelhos, como fazê-los funcionar e ela aprendeu bem. Aprendeu tão bem que na primeira oportunidade tentou usar o espelho da penteadeira para voltar a sua casa.
Tão tola a menina! Nenhum espelho a levaria para sua casa, só a lugares e tempos aos quais não pertencia, aos quais não podia pertencer. E a Foca ficou tão irritada, tão tomada pela raiva que a menina pensou que seria seu fim. Mas o fim, ainda que triste, significaria libertação e a Foca jurou jamais liberta-la. Por isso colocou nela algemas de prata e a prendeu no Quarto dos Espelhos. Tantas formas de chegar e nenhuma delas a sua própria terra, o seu próprio tempo. Ela poderia seguir por qualquer um deles, mas não demoraria nada e as algemas começariam a arder em seus pulsos. E delas surgiriam correntes tão finas e brilhantes que a puxariam de onde estivesse de volta aos domínios da Senhora Aquática.
A menina sabia. Também havia tentado fugir por um daqueles espelhos, o menor deles, o mais simples. Havia encontrado gente boa, pessoas simples que a acolheram. E como eles ficaram assustados ao vê-la sendo arrastada pela areia da praia por correntes de prata, sumindo no oceano sem deixar vestígio. A risada da Foca ecoando como arrepio.
E ela retornou aos domínios da Foca, mas agora confinada ao seu Quarto dos Espelhos. Sem cama, sem mimos. Havia um amontoado desses objetos pequenos e dispares em um canto, suas coisas. Botões coloridos, pedras brilhantes, pedaços de tecido, um relógio quebrado, um pé de sapato, um chapéu de moça, um pedaço minúsculo de espelho partido. Pequenos cacarecos que ela reuniu ao longo do seu tempo como prisioneira. Contava que assim que chegasse o verão seriam seis anos, mas ela não esperaria para ver. Suportava apenas o que era devido. O tempo devido para ouvir sussurros, conversas atrás das paredes, saídas fortuitas de portas trancadas. O tempo para saber que só havia um caminho de volta para casa e ele era simples. Bastava retornar pelas próprias pegadas, através da muralha de rosas e espinhos, através do ralo que levava ao fundo do mar. de volta a praia de onde nunca deveria ter saído. O tempo para descobrir que a Foca guardava a chave de sua mansão em um cordão no pescoço e que quando ia dormir ou se divertir com suas vitimas a colocava debaixo de seu travesseiro. Tempo para descobrir que correntes de prata podiam ser partidas por uma lamina empunhada por alguém de sua própria família. Tempo para escolher aquela noite como a noite perfeita para a fuga. A noite mais longa do ano, a bebida mais nobre servida à Foca, uma vitima forte e disposta a lutar pela própria vida.
Estava cansada, era verdade. A luta com o marinheiro tinha sido intensa e a deixara ferida, mas não o suficiente para desistir. Os Cortes feitos pela adaga do Brutamonte ainda sangravam. Ela estendeu um tecido verde e rasgou-o em tiras, depois enfaixou partes do braço e da cauda. Guardou os botões, as pedras, o relógio e o chapéu em uma trouxa feita de tecido rosado. O espelho brilhava ao lado do pé de sapato. A moça serpente respirou fundo e imaginou o lugar que mais temia no castelo. Seu dedo tocava a superfície lisa do pedaço de espelho, a ponta da unha desenhava qualquer coisa antiga e incompreensível. A luz do espelho se tornou mais intensa, muito maior, um círculo de luminosidade partindo de uma superfície tão pequena.
Longe dali, em outro cômodo da mansão, um espelho brilhava igualmente. Baús abertos e outros fechados. Joias e tecidos expostos, tesouros de muitas épocas. Uma cama grande e uma porta sólida trancando tudo aquilo no canto mais precioso para a Foca.  A moldura viva de anêmonas se agitando sem fugir, sem exibir a parte que faltava do espelho. Então surgiu um dedo, depois uma mão, então um o braço inteiro. Pele humana enfeitada de escamas aqui e ali. Havia o receio de ir mais longe, mas também a determinação de tatear. Não precisava se esticar muito para alcançar a cama, os dedos se enfiando entre os lençóis de veludo molhado, cor de sangue. O toque frio da chave fez a mão se fechar com força em torno do objeto desejado e a menina serpente puxou de volta seu braço. A luz do espelhinho se extinguindo logo em seguida.  Na palma da mão aberta reluzia a chave ornamentada.
Os espelhos do quarto mostravam mil meninas sorrindo em ângulos diferentes, seus tantos olhos cintilando em direção a muitas chaves, grandes e pequenas.

4 comentários:

  1. Sarusca, que lindu!!!!!

    vc tem o link de Durms qdo era no Invisionfree?!

    ResponderExcluir
  2. Ah, que bom que vc curtiu, Letizoca!

    Eu tenho aqui em backup, vou procurar e te passo!

    ResponderExcluir
  3. Como sempre, maravilhoso!!!

    Bjus Saruska!!!

    Saudades dos del Aguirre!!!

    ResponderExcluir
  4. e eu preciso terminar esse conto...

    ResponderExcluir