Parte quatro do conto longo "Canção para Melusine"
Antes de ler este aqui é melhor começar pela parte I Neste link , a parte II Neste link e a parte III Neste Link
- Com mil serpentes marinhas,
Moe! Deixa um trago para mim, caralho! - O magrelo sujo gritava para o anão que
virava a garrafa na boca. O liquido escorrendo pela barba mal feita. Um
brutamonte ao lado do anão jogava pedras na agua escura. O trajeto da pedra
formando círculos variados na superfície aquática.
- Você que já bebeu demais,
Espaguete! Deixa o Moe. Amanhã a gente embarca no Arquiduquesa D'Armanteau e o
capitão é osso duro. Precisamos embarcar os três, senão o plano não vai dar
certo.- o brutamontes respondeu sem tirar os olhos do cachimbo que estava
acendendo.
- E você acha mesmo que é possível
roubar a "encomenda"?
O brutamonte levantou a cabeça. A
luz do fosforo incidiu sobre a cicatriz que cortava o rosto dele de cima a
baixo.
- Se não for possível roubar
"a encomenda", roubamos todo o resto! - respondeu com um sorriso de
dentes tortos e nascidos uns por cima dos outros. Nesse instante um barulho alto
interrompeu a conversa. Parecia o som de um barril jogado ao mar. Os três
homens olharam para a água. Era noite, pouco viram. O brutamonte voltou a sentar-se.
Moe voltou a beber. Espaguete continuava a olhar para a água, intrigado.
- Será que era uma sereia? Os
homens do Delírio dos Oceanos disseram ter encontrado uma nessa ultima viagem.
Criatura terrível. Era bonita como um amanhecer em alto mar, com grandes olhos
verdes e cabelos azuis. E um rabão de peixe. Hahaha. Eles todos queriam provar
da sereiazinha ao mesmo tempo e começaram a brigar, dai ela puxou o pé de um
deles para a água e tudo o que sobrou do pobre homem foi uma mancha enorme de
sangue no mar. Criatura horrível.
- Cala boca, Espaguete. Não
existe porra de sereia nessa vida. Dá um trago para ele, Moe, ao menos bêbado
ele não fala merda.
- Socorro! - era uma voz
feminina, fraca, cortada entre soluços. De onde estavam mal era possível
ouvi-la. Os homens levantaram mais uma vez e olharam para as águas além das
docas. Agora podiam vê-la poucos metros de distancia, tentando nadar
miseravelmente.
- É uma sereia! - Afirmou
espaguete dando vários passos para trás. Caiu de costas ao tropeçar em um
caixote.
Moe e o Brutamonte continuaram na
borda, tentando ver melhor. O que viam era uma moça pequena, jovem ainda,
usando uma camisa branca como as garotas da casa de Madam Elaine usavam quando
realizavam seu oficio de mariposas por muitas horas seguidas sem trégua dos
clientes. A garota parecia até um pouco suja, talvez fosse novata no oficio e
na casa de Madam, o que explicava ela estar na água agora. "Uma fuga mal
sucedida? Bem provável" pensaram os dois homens enquanto trocavam olhares.
Eram frequentadores do local e a dona podia pagar uma boa quantia por trazerem
de volta sua "borboletinha rebelde".
- Eu vou - disse o Brutamonte.
Moe deu mais um trago na garrafa e sentou-se
num caixote próximo a Espaguete.
- Calado - o anão ameaçou o
magrelo quando ele ensaiava dizer algo para impedir o outro de saltar.
O Brutamonte sentiu a água fria
daquela noite de dezembro como uma adaga cravada nas costelas. Nadou com
facilidade até onde calculou que a garota estaria e não a viu mais. Devia ter
perdido a consciência. Ele mergulhou para procura-la nas aguas escuras duas
vezes até onde seu folego permitia. Decidiu tentar mais uma vez ao menos para
recuperar o corpo, poderiam achar alguma utilidade para ele. Mergulhou e nadou
um pouco antes de sentir algo roçando em suas costas. Virou-se e olhou para a
escuridão daquele mar em noite de lua. Então algo agarrou suas pernas e o
puxou. Bolhas de ar subiram devagar para avisar aos que ficaram em terra que
algo não ia bem.
A luz da lua refletiu fracamente
o punhal. Brutamontes golpeou a coisa
que prendia suas pernas. Ferro do sangue e sal do mar. Viu um lampejo de
escamas brancas. A coisa o soltou. Nadou
buscando o ar e percebeu o quanto se afastara das docas. Percebeu também que
algo rodava em torno dele e apertou o punhal com força na mão. Um barulho de
água se movendo o fez virar-se e ele a viu. Era a criatura mais estranha que já
havia encontrado. Parecia uma mulher, mais mulher nenhuma teria aquela aparência
a não ser que estivesse morta ou que não pertencesse a esse mundo. Ela era uma
profusão de pérolas e cabelos loiros, de escamas brilhando numa pele humana, de
gotas salgadas escorrendo por lábios carnudos. Tão bonita e desejável, e ainda
assim tudo que ele via era a expressão daquele olhar. Algo triste, algo doce,
algo pedinte, algo perdido. Ele não sabia dizer o que era, mas parecia saber o
que ela dizia com aqueles olhos. Como era ser tão só.
- Olá - ele ensaiou - Você fala
minha língua?
Ela fez que sim com a cabeça.
Estavam frente a frente, iluminados por uma lua sem vontade., cercados pelo
azul profundo.
- Vo Você é uma sereia? - Ela fez
que não com a cabeça. E desviou seus olhos de pérola. Ele agradeceu intimamente
porque era impossível olhar aqueles olhos e não sentir. E era horrível se
sentir daquela forma.
- Desculpe - ela disse por fim.
Uma voz tão pequena, tão sussurrante,
tão longe dos cantos hipnóticos que se espera das damas do mar. - Ela escolheu
você, assim como me escolheu um dia! Eu apenas sou aquela que atrai. Aquela que
rouba! Não há nada que eu possa fazer. Ela é a Senhora a se temer!
Ela elevou seus olhos, duas
pérolas negras num lugar ao qual não pertenciam, molhadas de algo que
cintilava.
- ...Desculpe!
Brutamontes sentiu aquele abraço
escorregadio. Uma forma sinuosa, recoberta de escamas brancas. Uma serpente
como as das estórias mais assustadoras. A sua frente a parte humana continuava imóvel
como um sonho. A parte serpente o asfixiava por baixo da água. Ele apertou o
cabo do punhal e rasgou novamente a cauda da moça-serpente. Toda a força que
conseguia, o mais profundo que pode. Ela gritou e mergulhou. Ele a seguiu nas
águas. Podia vê-la por completo, nadando em curvas, o movimento impossível
realizado pelas costelas não mais humanas. Quanto mais nadavam para o fundo
mais escuro ficava. Então ela sumiu. Os segundos pareceram horas enquanto Brutamonte
olhava ao seu redor. Esperando por uma estória de pescador. A luz quase
inexistente e ele sentiu uma pancada forte das costas. Foi arremessado para
frente. Apertou firme o punhal. Sentia falta de ar e começou a nadar de volta a
superfície. Desespero. Um novo golpe
atingiu seu estomago. Cuspiu sangue.
Sensação de atordoamento.
Ela surgiu como uma deusa terrível
de tempos sombrios. Segurou-o os pulsos. Eram mãos tão frágeis, mas tão firmes.
Brilhavam duas pulseiras grossas de um metal claro.
Dançavam uma valsa estranha, frente a frente, o punhal entre eles. Brutamontes
tentava alcançar o rosto da moça-serpente. Ela impedia o pulso dele de avançar.
O peso dos corpos afundando devagar. Bolhas de ar fugindo pelas narinas do
homem. Os cabelos dela dançando ao redor da cabeça como uma anêmona durada.
Dedos libertando o punhal. A luz refletida na lamina que agora navegava seu próprio
caminho. Ela empurrava-o para as profundezas. Ele sufocava. Esperou dentes
pontiagudos rasgando sua carne. Esperou afogar-se de uma vez. Esperou bater com
as costas no fundo daquele mar antes do fim. Um leito de areia branca, seu cemitério
azul e silencioso.
Ao invés disso ele a viu soltar
um de seus pulsos e pegar um espelho brilhante mesmo sem a luz da lua
alcança-los. Uma luz mais e mais forte a engolir a serpente e o homem. Então
sentiu suas costas baterem em um chão de pedra. E não sentiu mais falta de ar,
mas sabia que ainda estava debaixo d’água. Abriu os olhos e se viu em um grande
salão submerso. A moça serpente estava ainda sentada ao seu lado, olhando para
frente. Um olhar que derramava raiva e terror. Brutamontes seguiu o olhar e viu
outra criatura com as formas de uma mulher e olhos redondos e negros como os de
uma Foca.
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